O isolamento social e alteração no cotidiano 

O doutor em educação e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), Jaime Farias Dresch, fez uma análise sobre as transformações do nosso cotidiano e o que esperar para o futuro após a pandemia.

Esta pandemia nos forçou a permanecer em isolamento social. Como efeito imediato dessa situação, pudemos evidenciar, de uma forma dramática, algo que já foi dito na Antiguidade por Aristóteles: o ser humano é um animal político. Nos demos conta que não apenas pensamos e racionalizamos sobre a realidade a nossa volta, mas fazemos isso, necessariamente com o outro, para o outro. O isolamento nos mostrou claramente nossa dimensão social como espécie. Vivemos para interagir e para construir o mundo de forma coletiva. O individualismo, portanto, é um atributo artificialmente estimulado nos seres humanos. Muitas coisas decorrem dessa percepção e, certamente, iremos produzir infinitas análises a partir dessa experiência de isolamento. Um aspecto que me ocorre agora diz respeito ao uso das tecnologias digitais para tentarmos manter contato com o outro. Pensar sobre isso não é uma banalidade. Neste momento, estamos colocando em questão o uso de tais tecnologias. Veja, para pessoas que nasceram antes da chamada revolução tecnológica, antes do uso massificado de computadores e celulares, antes da internet fazer parte do cotidiano, para essas pessoas, e eu me incluo neste grupo, havia uma expectativa muito grande depositada na democratização do uso das novas tecnologias. Entretanto, o que vimos acontecer nestas duas últimas décadas foi um processo de apropriação dessas tecnologias por parte do mercado, que impôs sua lógica específica e que vem apontando os rumos de um processo que perdeu boa parte do seu conteúdo revolucionário. Hoje, percebemos que as mudanças trazidas pelas novas tecnologias, de fato, transformaram apenas a superfície das relações humanas. A “sociedade da informação”, como metáfora do mundo contemporâneo, configurou-se como um eufemismo para a perversidade neoliberal: não há informação para todos e todas, assim como não há um processo de democratização da dignidade humana, pelo contrário. As desigualdades sociais têm sido as bases, mal disfarçadas entre os efeitos da globalização, de toda essa lógica econômica que se sobrepõe aos valores da vida.

Penso que, de modo geral, as pessoas já vinham desconfiando que as tecnologias não estavam produzindo os resultados que se esperava há algumas décadas. Essa desconfiança pairava no ar e, agora, com o isolamento, tornou-se bastante evidente. Concretamente, posso mencionar um exemplo dessa ruptura, que demonstra a dimensão esquizofrênica do nosso cotidiano. Refiro-me à orientação da rede estadual em manter as atividades letivas durante o isolamento social. Para que isso seja possível, o poder público admite a existência e opera com duas realidades, com dois públicos distintos: os digitais e os analógicos. Ou seja, ainda há estudantes que não têm acesso aos recursos tecnológicos necessários para assistir a uma aula on-line ou participar de uma teleconferência. Para estes, serão oferecidas atividades impressas. Essa política expõe de uma vez por todas que a sociedade da informação não chegou para todos e todas. E não nos indignamos (tanto) com isso porque somos fruto de um processo de naturalização das desigualdades. Como sociedade, não nos preocupamos com a distribuição equitativa dos recursos tecnológicos, posto que o mercado já vinha assumindo essa tarefa. Passamos a utilizar tais recursos não como cidadãos, mas basicamente, como consumidores, para os quais foi oferecido o mínimo necessário de tecnologia. Nesse sentido, a cidadania no mundo globalizado é medida pelo nível de consumo. Zigmunt Bauman, no seu livro sobre a globalização, já apontava, no final da década de 1990 e com incrível atualidade, as consequências humanas de nosso modelo societário. O mundo global, sem fronteiras, é um discurso que serve não às populações, mas ao processo de financeirização da economia mundial. É a lógica dos fluxos de investimento que operam sem qualquer ancoragem na lógica do bem-estar da humanidade.

O isolamento social nos permitiu pensar sobre algumas dessas questões, sobre o quão limitada é a distribuição de riquezas e de recursos tecnológicos. Nos permitiu compreender que estamos fazendo um uso limitado desses recursos e está nos obrigando a descobrir novas utilidades e novas possibilidades para enfrentarmos os efeitos psicológicos do isolamento. Precisamos nos comunicar e, parece que estamos aprendendo a fazer isso melhor do que antes. Tínhamos nos acostumado com um ritmo muito veloz de trabalho, com uma qualidade precária em nossos relacionamentos interpessoais e familiares. Estávamos habituados a um processo de subjetivação construído por meio de desejos fabricados pelas campanhas de marketing. Depois de duas ou três semanas isolados não podemos deixar de pensar o quanto é desnecessário atender aos impulsos do consumo e o quanto precisamos, de fato, nos aproximarmos do outro.

Nesta Páscoa, certamente, a venda de ovos de chocolate despencou. Mas se pararmos para pensar, há um conteúdo positivo nesta crise. Teríamos outra oportunidade para problematizar o sentido de um feriado como a Páscoa? Para os cristãos, parece ser um bom momento para distinguir a Páscoa dos corredores repletos de ovos de chocolate nos supermercados. Para a população em geral, a crise permitirá olhar para o mundo e para o outro, permitindo um renascimento. Este é um momento em que a humanidade poderá se preparar para o que vem à frente. Sairemos transformados dessa experiência e, se o mundo será outro, não sabemos, só nos resta participar dessa reconstrução e utilizar o aprendizado obtido nestes tempos difíceis para construir algo diferente.  

Um tempo para a natureza

Ao pensarmos na questão da preservação ambiental, precisamos lembrar que ela não passa apenas pelas escolhas individuais como sugerem diversas iniciativas educacionais contemporâneas, muitas delas apoiadas por organismos internacionais, como a Agenda 2030, da ONU. O que percebo é que com o isolamento social pudemos observar a queda drástica das emissões de poluentes e perceber o quanto nosso modo de vida degrada o planeta. Entretanto, essa é uma situação transitória, pois o setor produtivo não irá permanecer parado ou reduzido por muito tempo. Dentro de alguns meses, a indústria retomará sua produção, até porque há uma pressão por parte dos empresários e dos investidores para que isso ocorra.

Todavia, acredito que pode surgir desse momento um maior engajamento pelas causas ambientais. Mas volto a afirmar que o voluntarismo não é a resposta em si mesmo. É preciso que as relações sejam democratizadas, o que, de alguma forma pode acontecer após este período de isolamento. Percebo que as políticas neoliberais, estruturadas sobre as desigualdades sociais extremas, sobre a exploração dos países mais pobres e sobre a degradação ambiental tendem a entrar em colapso. Isso porque o discurso neoliberal está sendo questionado neste momento, uma vez que não há soluções possíveis para enfrentar a crise da pandemia sem a intervenção estatal. E aí está um dos efeitos positivos da crise causada pelo novo coronavírus: colocar em discussão as relações políticas, que terão preponderância neste momento em relação aos imperativos econômicos. Caberá à população utilizar as aprendizagens do período de isolamento para produzir relações mais democráticas. Dito de outra forma, se esperamos um mundo melhor após a pandemia, cabe a nós produzirmos essa nova realidade, pois ela não será criada espontaneamente. O que temos a nosso favor é a aprendizagem de que os valores em torno da preservação da vida humana devem prevalecer sobre os interesses econômicos. Ou ainda: que a economia só faz sentido se estiver funcionando em prol da humanidade. Percebemos que o ser humano retornou legitimamente para o centro das discussões políticas, e isso tem um potencial enorme para gerar uma onda suficientemente grande para abalar a hegemonia dos discursos pautados no obscurantismo e na austeridade econômica, inimigos do progresso científico e das políticas sociais.

Matéria publicada pelo Correio Lageano Acesse em www.clmais .com.br

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